sábado, 6 de outubro de 2007

VIII

Bate Boca

Ela hesita, e abre, e fecha
Articula o que vai falar
Faz dele seu alvo, de sua fala flecha
mas está sua lingua a velar
sob o domínio da ingênua cólera

Ela hesita, e abre, e grita
Grita um silêncio rouco
Engana a todos, inclusive a si, Rita
Se irrita e o chama de louco
deixando fugir seu oco choro

Ela hesita, e grita, e chora
Chora um ano e meio, receio
Agora teme que ele vá embora
Já lágrimas pulam do seu seio
Embotadas de um emergente desespero

Ela hesita, e chora, e cede
cede pela fora da fadiga
Cansou de briga, mas pede
Pede que ele também ceda e diga
diga que perdeu, ela venceu
e é o amor da sua vida.

Ela hesita, e cede, e beija
Ele beija, cospe e escarra
Continuam o bate boca
E aquela briga bizarra.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

VII

Caiu de Madura

Alguns minutos viram eternidade quando embotados com dor e lágrima. E a eternidade não tem sexo, cor, muito menos tempo. A Física explica uma queda através da lei gravitacional, a qual todos suspeitam que aja proporcional à idade. Uma queda pode elevar uma alma ao céu, jogá-la no inferno ou encaminha-la ao purgatório, onde esperam pelo julgamento aqueles que caem. Dona Mocinha caiu voltando do supermercado, quando a sua amiga bengala e seus noventa e pouquinhos anos não resistiram à força da gravidade. Essa não era a primeira queda de sua vida, nem daquele ano, mas poderia ser a última. Sua perna esquerda já estava seqüelada, cheia de parafusos e, como se não fosse o bastante, a direita resolveu ser generosa, solidária e compartilhar o sofrimento. Foi a segunda fratura no mesmo ano. Não demorou muito para que fosse socorrida pelos vizinhos, parentes e, como ninguém mais faz cursos de primeiros socorros, acabou sobrando para a pobre velhinha e suas pernas tortas, mal posicionadas. Diante dos berros, optaram recorrer à SAMU. A espera pela SAMU foi longa e pelo juízo final foi maior ainda. O que doía mais, suas pernas ou sua solidão? Houve quem lamentasse, mas quem risse e duvidasse da veracidade da situação, deixando-a ali jogada no chão. Apesar de estar rodeada de gente, as lágrimas eram somente suas, a dor era somente sua, a queda foi somente a sua. Naqueles oitenta minutos, entre a escada de seu prédio, a chegada da SAMU e sua entrada no hospital, Dona Mocinha deu o seu primeiro passo, lembrou do seu primeiro beijo, assim como do seu último, reuniu os seus melhores amigos, reviveu uma vida inteira. Ela agora tinha medo e seu medo ia além da morte, ia até o fim de seu tempo, de seu tempo de viver. A queda esclareceu-lhe: a liberdade que tanto questionou, sempre existiu, até aquele momento. E o Deus, em quem nunca, de fato, acreditou, lhe serviu de conforto a partir dali. Chegou a rezar, desejou ir para o céu, mas todos sabiam que o que a aguardava era o Inferno. O inferno deveria ter ar condicionado para evitar as inevitáveis infecções, serviço de quarto, médico e auxiliares de enfermagem. O inferno, porém, queimava e tinha o seu cheiro característico de enxofre confundido com o de sangue.