sábado, 29 de dezembro de 2007

Mangas


Não há guerra, mas andar pelas ruas de Salvador é perigoso, exige extremo cuidado. E sorte. Os dias enganam os pedestres, deliciando-os com o verão, sol e mar, distraindo-os da arriscada missão de sair à rua, de andar sob as mangueiras homicidas. Todo cuidado é pouco, porque podem pisar no lugar errado, na hora errada, e “boom”. A bomba, porém, não está plantada no chão, ela vem do céu e não é fruto de ódio, de rivalidades, de batalhas... ela é fruto da mãe natureza, que por mais maltratada que esteja, não guarda ressentimentos de nós humanos, eu acho. Mas o fato é que é inevitável, um dia ou outro, uma manga atingir alguém. Esse alguém pode até ficar feliz, se sobreviver e comer a manga depois, mas duvido que esse alguém ficará feliz com um traumatismo craniano.

domingo, 23 de dezembro de 2007

O homem alface

Falou de futebol, mulheres e rock, mas o espelho não reagiu. Por um segundo achou-se louco - o que estava fazendo ali? - depois sorriu, estava engraçado com aquele terno, com aquela gravata. Olhou-se dos pés à cabeça e, por último, gostou do que viu. Via poder (a roupa fora cara) via futuro (ia ficar rico, ou melhor, mais rico), esquecia o passado (já não queria mais ser astronauta, dizia-se advogado).

Tomou seu café, dopou-se com cafeína para poder ler o jornal sem despertar emoções e, por mais que o café não costume ter esse efeito anestesiador, funcionou.

“Jovens de classe média alta matam policial”. Leu logo nas primeiras páginas e pensou consigo mesmo que aquela poderia ser uma ótima oportunidade para ganhar dinheiro. Poderia defender aqueles babacas, fazê-los de assassinos a vítimas com um discurso Ratzeliano naturalista: “foram todos corrompidos pelo meio”. Não, argumento utópico, vulnerável. Iria entrar em contado com a família das “vítimas algozes” e ofereceria seus serviços. Depois pensaria em como defendê-los.

Preparava-se para sair quando o telefone tocou. Era ela. Mas que mulher mais chata, não largava do seu pé. Perguntou com uma voz meio tímida: “Então, nosso almoço está confirmado, né?”. Ele queria dizer não, pretendia passar a hora do almoço com sua secretária, discutindo assuntos extra-negócios, mas não podia dizer não a uma cliente, mesmo que fosse uma cliente “maníaco-depressiva”, recém divorciada, que o perseguia depois de apenas uma noite de consolos. Ela tinha dinheiro e, além do mais, era ela quem pagaria o almoço e também o honorário determinado por ele. Riu-se. Pensou estar agindo como um garoto de programa. Depois pensou que poderia até ser uma profissão lucrativa.

“Sim, é claro, querida. Discutiremos o contrato do seu divórcio e te explicarei os seus atuais direitos”. Ele sabia que no último almoço já tinha tido essa conversa com ela, mas não podia perder a chance de aumentar os honorários. Tempo é dinheiro e ele não podia, nem devia, se dar ao luxo de perder tempo sem ganhar dinheiro.

Ainda pensando em tempo e dinheiro, tentando multiplicar a ambos, catou a chave de sua Mercedes e seguiu em direção do que chamava trabalho e de vida. Mal sabia ele que sua vida estava por um triz e que o tempo que tentou economizar seria todo seu, chegando até a “entediá-lo”, às vezes, no seu triste quarto de hospital, em seu amargo estado de vegetação. O acidente foi feio e foi o tempo, em forma de relógio que lhe distraiu alguns segundos e o transformou num alface.

Ele não pensou em mulheres, não pensou em futebol, muito menos em rock, só pensou em um alface, a imagem que o seu espelho agora refletia.